Quando se trata de atendimento a vítimas de trauma, o reconhecimento e manejo precoce do choque hemorrágico podem determinar a sobrevivência do paciente. Em ambientes variados, desde hospitais e prontos atendimentos até cenários pré-hospitalares como plantões no SAMU é crucial que o profissional de saúde esteja atento a erros comuns que comprometem o prognóstico. Neste post, abordo os três principais equívocos no atendimento ao choque hemorrágico e te indico os melhores caminhos para evitá-los.
1- Não Reconhecer o Choque
O primeiro e mais frequente erro é não identificar precocemente que o paciente está em estado de choque. Isso é especialmente comum em contextos de trauma em que não é possível obter uma história clínica confiável (como em casos de TCE) ou em pacientes que ainda mantêm sinais vitais aparentemente estáveis.
O choque pode passar despercebido na sua fase inicial. Segundo a classificação do ATLS (Advanced Trauma Life Support), uma perda de até 750 ml de sangue, menos de 15% da volemia, pode não alterar significativamente os sinais vitais. Frequência cardíaca, pressão arterial e saturação de oxigênio permanecem normais. Isso pode levar o profissional a subestimar a gravidade da situação e até liberar o paciente, o que representa um risco significativo.
A observação contínua é um recurso valioso e, muitas vezes, mais revelador do que exames complementares como raio-X ou tomografia. Durante a observação, alterações como taquicardia progressiva e mantida, sudorese, confusão mental, taquipneia e queda da pressão arterial devem levantar suspeita de evolução para choque. A tabela 1 apresenta variações clínicas vinculadas à gravidade da hemorragia.
Além disso, é fundamental lembrar dos principais compartimentos onde o paciente pode estar sangrando “escondido”: intracraniano, cavidade torácica (hemotórax), abdome, fraturas de ossos longos, subcutâneo e sangramento externo. Um hemotórax, por exemplo, pode acumular até 3 litros de sangue sem sinais visíveis externos, levando a um choque hemorrágico e, em alguns casos, a um choque obstrutivo por compressão cardíaca.
Reconhecimento pelos graus do ATLS:
-Grau 1: Perda de >15% da volemia (750), frequência cardíaca <100 bpm e pressão arterial ainda normal
-Grau 2: Perda de 15 a 30% da volemia (750-1500 ml), taquicardia evidente, porém pressão arterial ainda normal.
-Grau 3: Perda de 30 a 40% (1500-2000 ml), com pressão arterial já diminuída, taquicardia acentuada e perfusão periférica comprometida.
-Grau 4: Perda > 40% (>2000 ml), pressão arterial crítica (50/30, 60/40), confusão, letargia e risco iminente de morte.
Tabela 1– Alterações nos Parâmetros Clínicos Relacionadas à Gravidade da Hemorragia
| Parâmetro | Menor | Moderada | Maior |
|---|---|---|---|
| Frequência Cardíaca (bpm) | Inalterada | Inalterada a Aumentada (>100) | Marcadamente Aumentada(>120) |
| Pressão Sistólica (mmHg) | Inalterada | Inalterada a Diminuída | Marcadamente Diminuída(<90) |
| Pressão de Pulso | Inalterada | Diminuída | Diminuída |
| Frequência Respiratória | Inalterada | Inalterada a Aumentada | Aumentada |
| Nível de Consciência | Inalterada | Diminuído | Marcadamente Diminuído |
| Déficit de Base (meq/L) | 0 a -2 | -2 a -6 | -6 a -10 e menor |
| Necessidade de Hemocomponentes | Improvável | Possível | Provável / Protocolo de Transfusão Massiva |
| Resposta à Ressuscitação | Rápida e Sustentada | Razoavelmente Rápida e Sustentada | Transitória a Mínima/Nenhuma |
| Controle Cirúrgico Necessário | Improvável | Possível | Provável a Extremamente Provável |
Fonte: Adaptado de ATLS: Advanced Trauma Life Support – Student Course Manual, 11ª edição (American College of Surgeons, 2025)
O reconhecimento rápido desses sinais é determinante para iniciar as condutas corretas e quanto mais cedo elas forem adotadas, melhor o desfecho para o paciente.
2- Reposição Excessiva de Cristaloides
O segundo erro comum é o uso abusivo de cristaloides como soro fisiológico ou ringer lactato na tentativa de compensar a perda volêmica. Isso pode dar uma falsa sensação de estabilidade, mas não trata a real necessidade do paciente: a reposição de sangue.
Seguir protocolos cegamente, sem individualizar o paciente, pode ser perigoso. Um paciente em grau 2 que recebe cristaloide e continua sangrando está em progressão para grau 3 e grau 4. Se o sangramento persiste, a administração exclusiva de cristaloides é insuficiente e pode até agravar o quadro, diluindo componentes sanguíneos essenciais.
A partir do grau 3, o manejo deve incluir a transfusão de sangue e hemoderivados, não apenas volume. A chave está em interromper a evolução da hipovolemia, evitando que o paciente entre em colapso hemodinâmico.
3- Ignorar a Coagulopatia
O terceiro erro, extremamente comum, é negligenciar a coagulopatia associada ao trauma. O sangue humano contém três elementos essenciais no contexto agudo do choque: hemácias, plaquetas e fatores de coagulação. Embora os leucócitos sejam importantes na fase posterior (quando surgem as infecções secundárias), eles não são úteis na resposta imediata ao choque hemorrágico.
Entendimento errôneo da perda sanguínea:
Imagine um paciente com hemoglobina 15, 350.000 plaquetas e coagulograma normal. Após perder um litro de sangue, muitos imaginam que esses valores cairiam drasticamente. Mas, na prática, ao coletar uma amostra de sangue imediatamente após o sangramento (antes de reposição volêmica e das respostas fisiológicas), os valores laboratoriais ainda refletem uma concentração “normal”. Isso ocorre porque o sangue foi perdido proporcionalmente — ou seja, perdeu-se um volume total com proporção igual de hemácias, plaquetas e fatores.
Essa estabilidade aparente nos exames pode levar o profissional a subestimar a gravidade da perda, atrasando a introdução de transfusão de componentes. O erro se agrava quando há reposição apenas com cristaloides, o que dilui ainda mais os elementos essenciais à coagulação e contribui para o desenvolvimento da tríade letal do trauma: hipotermia, acidose e coagulopatia.
Transfusão no Trauma: A Clínica Vale Mais que a Hemoglobina
Em pacientes vítimas de trauma, a hemoglobina não é um parâmetro confiável para decidir sobre a necessidade de transfusão nas primeiras 48 horas. Isso ocorre porque, mesmo após um sangramento significativo, a concentração de hemoglobina pode permanecer aparentemente normal devido à falta de tempo para a redistribuição dos líquidos corporais. Ou seja, um paciente pode ter perdido um litro de sangue, mas a hemoglobina ainda aparentar estar “boa”: 11, 12 g/dL nos exames iniciais.
Nesse cenário, o que orienta a decisão de transfundir não é o exame laboratorial, mas sim os sinais clínicos. Pacientes com taquicardia, taquipneia e hipotensão diante de um mecanismo de trauma significativo devem ser avaliados com suspeita de choque hipovolêmico, independentemente da hemoglobina. A máxima aqui é simples: se o paciente sangrou, ele precisa de sangue mesmo que o exame laboratorial ainda não “acuse”.
O Que Transfundir? Estratégias Completas
Na prática, a transfusão no trauma não deve se limitar aos concentrados de hemácias. Apesar de, inicialmente, serem utilizadas 2 a 3 bolsas de concentrado de hemácias, é crucial lembrar da tríade da coagulação: hemácias, plaquetas e fatores de coagulação.
- Plaquetas: Um “pull” de plaqueta (ou “UI”) corresponde a uma unidade por 10 kg de peso corporal. Ou seja, para um paciente de 90 kg, serão necessárias 9 unidades; para um de 70 kg, 7 unidades.
- Plasma Fresco Congelado (PFC): Conforme a perda sanguínea persiste, adiciona-se o PFC. Um protocolo comum envolve 2 bolsas de concentrado de hemácias, seguido por 2 de PFC e 1 pull de plaquetas. Caso o sangramento continue, evolui-se para protocolos de transfusão maciça (PTM), com proporções que variam de 1:1:1 a 2:1:1.
É importante destacar que a transfusão maciça não precisa ser feita de forma imediata e completa. O essencial é que ela ocorra nas primeiras 24 horas de manejo. A priorização da clínica e a individualização da abordagem, de acordo com o contexto cirúrgico ou não operatório, são fundamentais para o bom desfecho.
O Perigo dos Cristaloides em Excesso
Uma armadilha comum no manejo inicial de traumas é a reposição excessiva de cristaloides, como o soro fisiológico. Por exemplo, diante de um sangramento arterial intra-abdominal, um paciente pode chegar com PA de 100×80 mmHg. Ao receber 2,5 litros de cristalóide, essa pressão pode subir para 150×95 mmHg. À primeira vista, parece uma vitória. Mas não é.
Essa diluição reduz a concentração de hemácias, plaquetas e fatores de coagulação. Além disso, uma pressão arterial elevada pode aumentar o sangramento ativo, especialmente em lesões arteriais. Portanto, a ideia de “normalizar” a PA com soro pode ser contraproducente. O alvo deve ser a estabilidade clínica, e não necessariamente valores pressóricos “perfeitos”. Em pacientes sem traumatismo cranioencefálico (TCE), é aceitável manter uma PA em torno de 100×70 ou 100×80 mmHg, desde que o paciente esteja monitorado e em transferência.
Outro ponto crítico é o risco de acidose hiperclorêmica com o uso exagerado de soro fisiológico, especialmente em locais onde não há Ringer lactato disponível. O excesso de cloreto interfere nas trocas renais e pode induzir acidose metabólica, piorando ainda mais o cenário clínico.
Hipotermia e Coagulopatia: A Armadilha Invisível
Pacientes politraumatizados, especialmente em ambientes externos (chuva, frio, demoras no atendimento), frequentemente chegam hipotérmicos. A hipotermia agrava a coagulopatia, uma vez que o sangue coagula menos em temperaturas mais baixas. Infelizmente, é comum esquecermos de medidas simples, como cobertores, soros aquecidos e aquecedores portáteis, principalmente após despir o paciente para o exame físico.
Manter o paciente aquecido não é apenas conforto é parte do tratamento e fundamental para a estabilidade hemostática.
Cálcio: O Cofator Esquecido da Coagulação
Outro fator que frequentemente passa despercebido é a hipocalcemia induzida por transfusões. As bolsas de hemácias contêm anticoagulantes que quelam o cálcio no organismo do paciente. E o cálcio é um cofator essencial da cascata de coagulação.
A recomendação prática é clara: após 2 a 4 concentrados de hemácias, considerar a reposição de cálcio, geralmente na forma de gluconato de cálcio (1 ampola), como fazemos nos casos de hipercalemia. A monitorização laboratorial é importante, mas em cenários de emergência, a reposição empírica pode ser necessária.
Não Atrasar a Transferência!
Finalmente, uma orientação essencial: não atrasar a transferência do paciente grave para um centro de trauma. Enquanto isso, medidas como raio-X de tórax, exame físico completo e, se possível, ultrassonografia (FAST e E-FAST), podem ser realizadas sem retardar o transporte.
Se o paciente não responde a 1000 ml de cristalóide, o próximo passo é sangue. E se desde já o início ele já apresenta sinais de choque grau 3 ou mais, peça sangue imediatamente, antes mesmo de completar a primeira infusão de cristalóide. Se estiver administrando grande volume de soro apenas para alcançar uma PA normal, talvez seja o momento de iniciar vasopressores para evitar os efeitos deletérios do excesso de cristaloide.
Em suma, o manejo do choque hemorrágico exige atenção constante e um olhar clínico experiente. Reconhecer rapidamente os sinais de choque, evitar a reposição excessiva de cristaloides, iniciar transfusão de sangue de forma adequada e não negligenciar a coagulopatia são passos fundamentais para salvar a vida do seu paciente.
Mais importante do que resultados laboratoriais isolados, a avaliação clínica e a tomada de decisão rápida são o que realmente fazem a diferença.
Referência:
AMERICAN COLLEGE OF SURGEONS. Advanced Trauma Life Support (ATLS): Student Course Manual. 10. ed. Chicago: American College of Surgeons, 2018.AMERICAN COLLEGE OF SURGEONS. ATLS: Advanced Trauma Life Support – Student Course Manual. 11. ed. Chicago: American College of Surgeons, 2025.
AUTOR: Lucas Facio Rezende
Cirurgião Geral, graduado pela Faculdade de Medicina de Juiz de Fora. Realizou residência em Cirurgia Geral na Santa Casa de Belo Horizonte, onde atualmente é preceptor. Atua como cirurgião do Hospital de Trauma João XXIII, com experiência consolidada no atendimento de emergências cirúrgicas e trauma.