Dom Quixote, a Odisseia e os heróis da saúde pública brasileira

Quem nunca ouviu falar de Dom Quixote, o homem que, após ler tantas histórias sobre cavaleiros e batalhas fantásticas, acreditou ser ele mesmo um nobre guerreiro? No entanto, sua própria narrativa não foi tão incrível quanto ele imaginava. No fim, reconheceu sua loucura em meio às tragédias de suas escolhas.

Ao analisarmos a figura de um autointitulado herói, muito me vem à mente a cultura do médico recém-formado. Animado pela possibilidade de exercer sua profissão após anos de preparo e intoxicado pela inebriante sensação de salvar vidas, o egresso da faculdade descobre as tentações do mundo da medicina.

Descobridor de sete mares

Na ânsia de desbravar novos mares como médicos, descobrimos aquele velho ditado: “mar calmo não faz bom marinheiro”. A tão sonhada carreira médica começa aos gritos de prontos-socorros lotados, procedimentos de urgência realizados sem o devido preparo e transportes de pacientes graves sem suporte adequado.

Lembro-me de uma vez em que recebemos um paciente pediátrico grave em um hospital de referência. O médico responsável pelo transporte estava em seu primeiro plantão. Sorridente, discursou orgulhoso que havia conseguido vencer aquele obstáculo. E, afinal, qual o problema nisso?

Quando falamos de medicina, percebemos que os espólios de guerra que a vida nos cobra têm um valor que não se mede em ouro ou prata. Nem as glórias e a fama são capazes de compensar: estamos lidando com vidas humanas. A morte de um homem, mulher ou criança, por imperícia, imprudência ou negligência, deixa marcas profundas e dolorosas em seus familiares. No momento da perda, descobrimos que nossos pacientes são muito mais do que os diagnósticos que carregam.

Sim, a perda de um paciente é um processo rotineiro na prática médica, mesmo entre os bons profissionais. O que, então, diferencia o bom plantonista daquele que age com impulsividade em busca exclusivamente de dinheiro? Talvez a resposta esteja na mesma característica que separa um bom de um mau pescador: saber reconhecer a hora de entrar no mar. Conseguir distinguir qual oceano você já é capaz de navegar. Respeitar aquilo que você irá enfrentar.

O retorno para casa

Diferente da figura quixotesca, embalsamada pela vergonha de ter escolhido falsas glórias, os heróis da Odisseia buscam com todas as forças o retorno ao lar, mesmo com as temíveis memórias do que passaram.

Imagine terminar o seu plantão com aquela reconfortante sensação de dever cumprido. Você fez o que deveria, preparou-se previamente para os imprevistos, aprendeu com seus erros e venceu os obstáculos. Imagine a sensação de olhar nos olhos dos seus pacientes e de seus acompanhantes e, em um momento de mútuo respeito, despedir-se enquanto eles agradecem sua atenção.

Se isso um dia acontecer com você, colega médico, é sinal de que descobriu o que realmente importa: não a fama, nem as glórias vãs, nem as riquezas que passam, mas a humildade de reconhecer suas limitações e a vontade de seguir em frente, mesmo com os tropeços do caminho. Heróis não são autointitulados, mas gerados no suor daqueles que ousam servir a algo maior do que o próprio ego.


Autor: Matheus S. Fassarella
Médico pela Faculdade Multivix, Pediatra pela Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Preceptor de Residência Médica em Pediatria pelo Hospital Infantil de Vitória (HINSG) e professor do PS Zerado.

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