Ao iniciar a faculdade de medicina, muitos estudantes se deparam com disciplinas que, à primeira vista, parecem distantes da prática clínica e até desnecessárias para o futuro profissional. No entanto, mesmo as matérias consideradas “chatas” ou sem aplicação imediata são fundamentais para a construção de uma base teórica robusta e para o desenvolvimento de uma competência crucial: a habilidade de estudar e aprender, mesmo quando o conteúdo não agrada.
Desafios Iniciais e o Choque de Realidade
Durante o ciclo básico, é comum ouvir alunos questionando a relevância de disciplinas como bioquímica, biologia celular, histologia e até matérias específicas de algumas instituições, como ecologia ou antropologia. Muitos se perguntam se não seria mais proveitoso dedicar-se desde o início ao raciocínio clínico ou ao estudo de eletrocardiograma e diagnóstico.
A idealização construída durante o vestibular, repleta de sonhos e expectativas sobre a carreira médica, frequentemente colide com a realidade do ensino superior. Nos primeiros anos, o dia a dia é marcado por longas horas de estudo em sala de aula, com conteúdos que parecem distantes do “fazer medicina” na prática. Esse contraste pode ser frustrante, mas é justamente nesse período que se constrói o alicerce necessário para uma atuação profissional segura e competente.
Aprendendo a Estudar o que Não se Gosta
Um ponto central para o sucesso na medicina é reconhecer que o estudo não se resume apenas ao que se gosta. Assim como na vida adulta é preciso cumprir responsabilidades e realizar tarefas que, por vezes, não são prazerosas, o ambiente acadêmico – e posteriormente a prática clínica – exige o domínio de conteúdos mesmo quando estes não despertam interesse imediato.
Desenvolver a “musculatura” do estudo significa treinar a capacidade de se dedicar a disciplinas e temas desafiadores. Essa habilidade prepara o estudante não apenas para superar as dificuldades do ciclo básico, mas também para enfrentar futuras situações em que será necessário aprender ou executar procedimentos que não estão em sua zona de conforto.
Da Teoria à Prática: Preparação para a Residência e o Mercado de Trabalho
Durante a formação, alguns estudantes podem adotar uma postura de especialização precoce, concentrando-se apenas em conteúdos que consideram relevantes para sua futura área – como ortopedia ou psiquiatria – e negligenciando o desenvolvimento de competências gerais essenciais. Essa mentalidade pode levar a um aprendizado focado apenas no “útil” para passar em provas, mas que deixa lacunas práticas importantes.
Na residência, a realidade se impõe: além de responder questões teóricas, o médico em formação precisa adquirir habilidades para atender pacientes, interpretar exames, executar procedimentos e tomar decisões clínicas com segurança. Muitos ingressam na residência sem a preparação prática adequada, sentindo-se inseguros para lidar com situações cotidianas, como coletar uma história clínica ou definir uma conduta emergencial.
Ademais, as jornadas intensas – que podem ultrapassar 60 horas semanais – deixam pouco tempo para estudos teóricos aprofundados. Por isso, é fundamental que a base construída no ciclo básico inclua a capacidade de enfrentar o que não agrada, garantindo que o profissional esteja preparado para os desafios práticos da residência e do mercado de trabalho.
Competências Globais e o Valor do Compromisso Profissional
Ao longo da carreira, o médico se depara com situações desafiadoras: integrar equipes de cirurgia ou anestesia, atender pacientes com perfis menos desejados e realizar procedimentos que, à primeira vista, podem não parecer atraentes. Essa realidade se manifesta tanto no dia a dia dos plantões e atendimentos em postos de saúde quanto na necessidade de realizar plantões extras para complementar a renda.
Portanto, é imprescindível que, desde o ciclo básico, o estudante aprenda a executar o que é indispensável, independentemente de preferências pessoais. A prática de fazer o que é necessário – sem reclamações ou procrastinação – distingue um profissional tecnicamente preparado de alguém que se especializou apenas para passar em provas.
Muitos alunos chegam à residência sem saber coletar uma história clínica, interpretar um exame ou definir condutas, justamente por terem negligenciado o desenvolvimento dessas competências fundamentais. Essa falta de preparo compromete tanto o desempenho durante a especialização quanto a atuação efetiva no mercado de trabalho, onde a prática exige habilidades amplas e uma postura proativa em aprender continuamente.
Realidade Profissional e a Continuidade do Aprendizado
Mesmo após concluir residências e pós-graduações, a jornada de aprendizagem na medicina nunca termina. Ao montar um consultório ou integrar uma equipe de cirurgia ou anestesia, o médico enfrentará novos desafios – desde estudar procedimentos e atendimentos que não estejam alinhados com suas preferências até adaptar-se a situações inesperadas. Essa continuidade reforça a importância de, desde cedo, desenvolver a virtude de fazer o que é necessário, independentemente do gosto pessoal.
A capacidade de estudar e se aprimorar diante de temas desafiadores é uma competência que renderá frutos ao longo de toda a carreira, garantindo não apenas sucesso acadêmico, mas também excelência na prática clínica.
Autor: Ygor Minassa
Médico pela EMESCAM (Santa Casa de Vitória-ES), Cirurgião Geral pela Santa Casa de Vitória-ES, Cirurgião Vascular pelo HEVV, Docente em Semiologia da Faculdade Multivix, Preceptor da residência de cirurgia geral da Santa Casa de Vitória, Professor e fundador do PS ZERADO.